Por que o Boca é o maior alvo de racismo na Argentina?
Tales Torraga
Fora da Argentina, é até difícil de acreditar. Mas os vídeos estão aí. Maior ídolo da história do Boca, Juan Román Riquelme cansou de ser chamado de ''negro feio'' ou ''negro favelado'' em seus tempos de jogador. E Riquelme nem seria considerado negro nos padrões brasileiros – se é que tais padrões deveriam contar para algo.
Com sua torcida abraçando 40% da população da Argentina, o Boca é também – e paradoxalmente – o maior alvo de racismo no futebol local. O último episódio foi dos mais tristes. No sábado, contra o Estudiantes, em La Plata, o lateral colombiano Fabra, 26, foi gravemente insultado pela torcida do Estudiantes a cada vez que pegava na bola, o que fez o Boca emitir um duro comunicado oficial a respeito.
Fabra passou o jogo ouvindo também um adversário lhe falar ''Dale, mono, jugá'', o covarde ''Dá-lhe, macaco, jogue'', o que o fez sair de campo chorando.
O que é pior, 1: O Estudiantes é tido na Argentina como um clube de exemplos sociais – como o próprio nome, ''Estudantes'', sugere.
E o que é pior, 2: As redes sociais são quase unânimes em apontar uma ''frescura'' de Fabra, que ''aprendeu a ser maricas com Lady Gago'', o volante do Boca.
A Argentina sempre foi aberta a imigrantes, mas na última década sofre com um sintomático fenômeno social: ''Para cá vêm cidadãos bolivianos, paraguaios e peruanos que acabam se matando pelo controle da droga”, afirmou recentemente a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, provocando os protestos desses países.
Daí para os insultos a torcedores e jogadores do popular Boca, um pulo.
Há uma triste tendência em Buenos Aires a colocar nas costas dos imigrantes tudo o que há de errado na capital – e há muita coisa errada, como em toda cidade grande.
Falar disso com os portenhos é, muitas vezes, ouvir derivados do mesmo raciocínio: ''Éramos um país europeu na América e isso despertou toda a inveja da América Latina. Hoje, lamentavelmente, essa Argentina europeia foi invadida pelas nações latinas que trouxeram ignorância, delinquência e mediocridade ao país''.
É demais. Superioridade racial argentina em pleno 2017 (!).
Estar nas arquibancadas em um jogo contra o Boca é desapropriado a sensíveis. ''Não pense mais, vai para a Bolívia que toda sua família está lá'', ''Há que matar todos'' e ''São de Bolívia e Paraguai'' são alguns dos cânticos disparados pelos rivais – e há músicas ainda piores. O ranço é tamanho que há até uma gíria para designar os torcedores do Boca: ''Boliguaios'', a mescla de boliviano e paraguaio.
As punições são tímidas.
O River foi multado e proibido de levar torcida a três jogos visitantes. Árbitros chegam a parar partidas, e em uma delas o multicampeão Carlos Bianchi, técnico do Boca, ameaçou abandonar o campo – mas ficou no quase, como visto aqui.
Ingenuidade achar que isso ocorre só com o Boca. É igualmente ingênuo achar que a origem italiana da equipe tem a ver. Não. E é esta intolerância crescente que deságua em reações ainda mais violentas – como a ''Noite do Gás Pimenta'' e outros absurdos, e quem lembra do começo do chileno Marcelo Salas sabe bem.
Se até o ''Matador'' e Riquelme, dois craques dos dois maiores clubes, River e Boca, sofreram com isso, imagine os demais. Argentina la tiene complicada, realmente.
* Às 12h03: Fabra negou que tenha sido ofendido pelos jogadores do Estudiantes, como relatado logo depois da partida: ''Não, isso é mentira, foram só os torcedores'', declarou à Rádio Blue. ''Dou graças a Deus e à minha mãe por eu ser negro. Essas ofensas já aconteceram outras vezes aqui na Argentina, mas não dei atenção. No sábado sim, porque escutei bem.''