Opinião: A “escola argentina de goleiros” é uma lenda. Nos enganaram
Tales Torraga
Você é brasileiro de mais de 30 anos? Com certeza já ouviu maravilhas da ''escola argentina de goleiros'', de ''arqueiros fantásticos, elásticos e acrobáticos''.
Você é argentino? Então sabe que tal escola é uma lenda. Que a Argentina jamais foi esta potência toda com as luvas, que houve uma safra acima da média ali pelos anos 50 e 60. E só. Não havia (e não há) um sistema, um legado, uma tradição que transmita os conhecimentos dos grandes porteros de uma geração para outra.
Até mesmo os grandes porteros merecem uma reflexão. Foram mesmo grandes?
O mito dos goleiros argentinos no Brasil ganhou força nos anos 70 pelo trio Cejas, Andrada e Ortiz, de Santos, Vasco e Atlético-MG – que reforçaram o que havia sido feito por José Poy no São Paulo décadas antes. Goleiros competentes, claro, mas do nível de muitos de então. Não depreciamos o que os goleiros argentinos fazem ou fizeram: só constatamos que não há uma escola, não há uma sala de aula, os talentos emergiram graças ao esforço individual. São como os brasileiros que conquistaram a Fórmula 1. Eles brilharam. A estrutura oferecida pelo país não.
Qualquer conversa com qualquer portenho que viva o futebol explica em detalhes a razão da inexistência da ''escola argentina de goleiros''. E a justificativa é a mais infantil do mundo: a pura discriminação. Na Argentina, o goleiro é o anti-futebol, é o que não sabe jogar e por isso acaba parando no gol. Maradona cansava de menosprezá-los, até mesmo como técnico: ''E você queria o quê? Ele é goleiro!''.
Tal hostilidade ajudou a formar personalidades mais ásperas.
Pato Fillol, o verdadeiro herói da Copa de 1978, com todo respeito ao Matador Mario Kempes, já repetiu que sua rotina depois dos jogos era descer do ônibus do River para bater em quem o xingava com gracinhas do tipo. Fillol sim foi um ET, o irmão argentino de Gylmar dos Santos Neves e do uruguaio Mazurkiewicz.
Houve também Amadeo Carrizo, o querido Amadeo, eleito o melhor da América do Sul no século 20. Mas como fazer de Amadeo a superioridade argentina no gol? Ele foi tido como responsável e quase apanhou em Buenos Aires depois do vexame e da queda do Mundial 1958 por 6×1 contra a Tchecoslováquia na primeira fase!
Se até hoje os velhinhos de Belgrano e Núñez dizem que o River só perdeu a Libertadores de 1966 para o Peñarol por culpa dele, Amadeo? Se os mesmos velhinhos e muitos outros quase me socam para garantir que os pré-históricos Tesorieri, Errea e Irusta não eram grandes coisas? ''Do que está falando, pibe? Nesses tempos fugíamos das Copas para não dar vexame! Vá estudar'', me cortam.
Fillol sim foi gigante – mesmo aos 40 anos, quando pendurou as luvas como estrela do Vélez. Os que vieram antes e depois são de nível abaixo. A Argentina nas últimas Copas foi defendida por Pumpido (1986 e 1990), Goycochea (1990), Islas (1994), Roa (1998), Cavallero (2002), Abbondanzieri (2006) e Chiquito Romero (desde 2010). Decadência? Não. Normalidade. A ''escola argentina de goleiros'' jamais existiu. Ela foi a lenda repetida mais de uma vez que virou verdade no Brasil.
(Que escola é esta que quis naturalizar o colombiano Navarro Montoya e o paraguaio Chilavert nos anos 90? Que escola é esta que tem Romero, reserva dos seus clubes há quatro anos, como recordista de participações na seleção? Que escola é esta que tinha um goleiro colombiano, Córdoba, como homem de segurança do grande time argentino moderno, o Boca de Bianchi? Não resumimos o ofício de goleiro ao de tapa penales como Goycochea e Abbondanzieri?)