Rebelde, algoz inglês: Senna causou comoção maior que Maradona na Argentina
Tales Torraga
A morte de Ayrton Senna há 22 anos ajoelhou a Argentina. Tanto quanto o Brasil.
Quem lembra daquele domingo garante: Buenos Aires chorou mais sua perda no GP de San Marino que o doping de Maradona na Copa dos EUA 55 dias depois.
A passional Argentina chora fácil. Senna e Francescoli foram imensos estrangeiros.
Tamanha idolatria argentina por Senna se explica muito por sua relação com Juan Manuel Fangio – pentacampeão, enxergava em Senna mais que um discípulo. E sim um filho. Em certa parte, era esta a maneira que os argentinos também o viam.
Hoje os dois juntos formam um dos mais visitados paineis do Museu Fangio em Balcarce, sua cidade-natal, a 415 km de Buenos Aires. Vale demais conhecê-lo.
Senna, 30 e poucos, ia a Buenos Aires todo ano para visitar Fangio, de 80 e poucos. As aparições eram sempre carinhosas. O argentino foi o confidente de Senna quando ele pensou em largar as corridas em 1990 ao brigar com os cartolas da F-1.
As brigas de Senna eram seguidas com total interesse. Havia extrema identificação argentina com sua audácia e rebeldia. Hoje, Senna está vivo em Buenos Aires com uma curva no circuito da cidade – cópia do S do Senna de Interlagos – e um traçado próprio com seu nome entre as muitas possibilidades do autódromo Oscar Gálvez.
O interesse argentino por corridas é incomparavelmente maior que o brasileiro. Pasion fierrera, dizem. Raúl Bocchicchio, 68 anos, dono de oficina, torceu muito por Senna: ''Que rivalidade com Brasil? Tá brincando? Vê-lo correr era arte pura, loco. Na Argentina era Senna ou Senna. Não tinha outro. Nosso maior ídolo, viste?''.
Gaston Saavedra, 32, professor de educação física de Lanús: ''Senna aqui é mais amado que Fangio e Reutemann, por ser mais contemporâneo que os dois. Lembro de, criança, ver os GPs e dizer: 'Você é doido, cara'. Toda a Argentina o seguia''.
As reminiscências atuais de Senna em Buenos Aires são duas. Kioscos de jornais na Corrientes, perto do Obelisco, vendem pôsteres seus. E um pôster em especial – surrado e amarelado – resiste ao tempo nas paredes de muitas oficinas. Este aqui.
Contribuía para a paixão argentina por Senna sua rivalidade com Nigel Mansell. Desde a Guerra das Malvinas, todo embate esportivo ante ingleses conta com torcida oposta. Senna acelerar McLaren e Williams, times do país? Não importava.
As ''manhãs de domingo'' no Brasil eram repetidas na Argentina com cardápio más rico. Terminava a F-1 e o país emendava a TV nos jogos de Maradona no Napoli.
Maradona, aliás, dedicou sua autobiografia a Senna. Escreveu que o piloto foi seu maior ídolo esportivo e prometeu chamar de Ayrton um eventual filho. Diegote visitou o túmulo de Senna em São Paulo na década de 90 e, há dois anos, postou esta foto.
Fantástica coincidência une os dois: no domingo em que Maradona fazia seu gol do século contra os ingleses, 22 de junho, Senna vencia o GP dos EUA em Detroit e inaugurava a comemoração caraterística erguendo a bandeira do Brasil no cockpit.
A fama argentina de Senna vinha também do namoro com Xuxa, muy conocida acá.
A relação dos dois é muito – muito mesmo – comentada no país 25 anos depois.
Autor de Ley de la ferocidad, dos mais lidos romances argentinos recentes, o escritor Pablo Ramos é outro eterno sennista: ''Me encantava o desespero que ele tinha em vencer em seu país. Eu e meu pai nos rompemos de tanto chorar quando morreu''.
Senna morreu em 94, 1º de maio. O GP da Argentina voltou à F-1 em 9.abril.95.
Luiz Alberto Pandini, hermano de longa data, então editor da revista Grid, estava lá.
E se arrepiou ao ler esta faixa na arquibancada:
Senna, toda vez que a F-1 correr na Argentina vamos vir te ver. Para a gente você sempre estará presente. Com o número 1 no carro, largando em 1º lugar, pilotando como só você sabe, e levando vitoriosa a bandeira de seu país ao lugar mais alto.
Ayrton, na Argentina te queremos igual a Fangio e Reutemann.
Aquele GP foi vencido por Hill, que herdou de Senna o primeiro carro da Williams.