Patadas y Gambetas

Bou, o bom exemplo

Tales Torraga

São 3h30 de uma madrugada de dezembro em Entre Ríos, Argentina.

Parado na estrada, o artilheiro da Libertadores está com os irmãos. Espera por dois caminhões com mantimentos. Concordia, sua cidade-natal, está inundada.

Ele é a estrela do Racing e talvez o principal atacante em atividade hoje na América.

Na calada da noite, quando jogadores – infelizmente – são notícia por baladas, bebedeiras e ostentações, Gustavo Bou, 26, está ajudando seu povo.

Bou descarrega caminhão de mantimentos em Concordia

Está tendo huevos – a forma argentina de pedir raça, colhões.

Está amando – não a camiseta de um clube. E sim um povo, uma origem.

Tudo isso ocorreu em dezembro e janeiro. Bou estava de férias perto de Concordia quando a enchente subiu. Entre Natal e Ano Novo, no melhor estilo Pepe Mujica, abriu sua casa e acolheu quem não tinha para onde ir.

Usou a fama e a tecnologia da melhor maneira: disparou WhatsApps e encheu dois caminhões. Acionou o Racing e organizou o abastecimento em Concordia.

Na estrada, um dos caminhões foi saqueado e esvaziado; o outro, desfalcado.

De próprio punho, Bou e parentes ajudaram a doar os itens. Gustavo é de família gigante. Tem oito irmãos.

Bou (regata e sapato azul) ajudando amigos em Concórdia

''De 20 amigos, 15 estavam fora de casa. Emprestei a minha para um deles colocar os móveis. E nenhum desses amigos pediu algo do que veio do Racing.''

A atitude de Bou recebeu críticas – leves – por eventual oportunismo. Deu de ombros. Se fosse encenar, não haveria necessidade da vigília na estrada. Umas fotos durante o dia – sorrindo e bem iluminadas, por favor – seriam suficientes.

Bou jamais portou uniforme ou publicidade. Chorou sincero ao dar entrevista. Esteve sempre com semblante desolado e cansado.

A bolinha de gude – da mais barata – era o brinquedo de Bou com os oito irmãos. Crédito: La Nación

Bou soube do drama de Concordia justamente quando recebia o prêmio de artilheiro (oito gols em dez jogos) da Libertadores do ano passado.

''Hoje você pode estar lá em cima. No outro dia, lá embaixo. A cabeça precisa ser forte para aguentar. Quando alguém está mal não pode se enxergar menor que ninguém. O mesmo ao contrário. Equilíbrio, sempre.''


Bou fala com calma sobre as dificuldades porque as viveu.

Criança, ajudou o pai, pedreiro.

Aos 14, trocou Concordia, de 130 mil habitantes, por Buenos Aires, 3 milhões de pessoas. Já era jogador do River Plate e vivia sozinho na capital. Chorava muito. ''Mas quando via o uniforme, sabia que aquilo era meu, que não iria desperdiçar.''

Aos 15, perdeu a mãe.

''Fiquei um pouco sozinho com ela muito doente no hospital. Sentou na cama e disse: 'Quero que continue no futebol, que vença, que possa viver disso. Vou te ajudar'. As enfermeiras não entenderam nada. Ela morreu logo depois.''

Arrasado, quase parou de jogar, mesmo com o pedido da mãe. No primeiro treino órfão, entrou no vestiário aplaudido com força pelos colegas do River.

Logo depois, chorava em casa, sofrendo com a perda. Em fim de semana em Concordia, olhou o pai trabalhando de bicicleta debaixo de sol forte. ''Também estou muito dolorido, mas preciso seguir adiante por vocês'', ouviu.

Sem camisa e com Centurión, hoje no São Paulo

Os pais são referências. Estão cada um em um braço, tatuados. Gostavam de ensinar com silêncio e distância. ''Jogava e dava chilique sempre. Meu pai e minha mãe deixaram de ver os jogos para eu perceber que precisava me comportar.''

A cara de Bou em 2011 mostra bem sua passagem pelo River

Bou caiu com o River. Participou do rebaixamento à Série B em 2011 e em 2012 foi emprestado a um time da segunda divisão, o Olimpo.

Rodou por Equador e pelo Gimnasia de La Plata – onde hoje joga seu irmão, Walter, de 22 anos – até chegar ao Racing e decolar.

''O futebol vai muito além de simplesmente fazer a bola passar por três traves. Tem muito mais a ver com você confiar em si.''

Bou está de boua. Faz gols sem parar mesmo contra times como o Boca Juniors. O Racing recebe o Boca às 19h15 de domingo em seu estádio, o Cilindro de Avellaneda. Nos últimos quatro jogos contra o Boca, Bou anotou – só! – oito gols.

Candidato sério na Libertadores, o Racing conta com dois jogadores grosos além de Bou. O goleiro Saja foi finalista da competição em 2007 . O atacante Milito, campeão europeu e mundial com a Inter de Milão em 2010.

Sua torcida é das mais fanáticas não apenas da Argentina, mas do mundo.

Bou, porém, pode logo mais ser outro argenchino – genial trocadilho criado em Buenos Aires para designar jogadores do país a caminho da China.

O Racing já recebeu proposta; se os chineses do Beijing Gouan aumentarem para US$ 10 milhões, bye bye Bou.

Até para facilitar o futuro financeiro da filha de 1 ano, Martina – que passa férias em Concordia em meio a 22 primos de diferentes idades.

Bou, a tatuagem e a filha

Hoje na Argentina fala-se muito do ''pertencimento'' de jogadores que voltam da Europa ao time de origem. Tevez no Boca, Aimar no River, Milito no Racing.

Pertencimento é o que Bou fez em Concordia. Pertencer a um bairro e a um povo, a amigos de toda a vida.

Como dizem os argentinos – excelente, este pibe.

Cara incrível, este Gustavo Bou.

Gol de Bou. Mãos aos céus, olhos na mãe