Livro reúne histórias de Sampaoli, novo técnico do Santos; leia capítulo
Tales Torraga
Anunciado pelo Santos como seu novo técnico, Jorge Sampaoli foi acompanhado de muito perto pelo blog na sua passagem pela seleção argentina. De tão excêntricas, suas (muitas) histórias inusitadas ganharam um grande espaço no livro ''Copa Loca'', que lançamos às vésperas do último Mundial.
A chegada de Sampaoli ao Brasil é propícia para resgatar este capítulo do livro e projetar o seu trabalho na Baixada Santista em outra perspectiva. Em Buenos Aires, Sampaoli sempre foi chamado de ''Pelado Sampa'' (o ''Careca Sampaoli'').
Agora temos um Pelado en Santos. O Dinho dos Mamonas não faria melhor.
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Volumes oceânicos de Quilmes, Schneider e outras cervejas diversas já foram consumidos nos botecos mundo afora para animar uma discussão interminável: afinal, qual é o peso da Copa do Mundo no legado de um grande craque? É possível reivindicar um lugar entre os imortais da bola sem ter conquistado um Mundial? A resposta costuma ser positiva quando se fala de figuras como Cruyff, Eusébio, Yashin; afinal, brilhar no palco máximo do futebol defendendo uma seleção que jamais foi campeã é uma façanha por si só. No caso de Lionel Messi, porém, o assunto torna-se bem mais espinhoso – a começar pelo fato de La Pulga ter construído sua notável carreira em meio a incessantes comparações com Diego Maradona.
A versão 1986 do Pibe estabeleceu um parâmetro quase inatingível para Messi nos Mundiais. A cada quatro anos, o torcedor argentino espera a reedição do fenômeno Maradona no México – e imediatamente passa a questionar o conjunto da obra do craque rosarino quando o tri não vem.
Nesse aspecto, a Copa do Mundo de 2018 surge como um momento crítico na trajetória de um dos maiores craques da história. Messi viaja à Rússia com 30 anos. No Catar-2022, é provável que já não tenha o vigor físico capaz de fomentar seu desconcertante estilo de jogo. Sabendo disso, Lio tratou de recrutar um aliado para encarar o desafio monumental de saciar o desejo de conquistas de seu torcedor. Entra em cena um dos mais excêntricos personagens da extensa galeria de tipos raros do futebol argentino: Jorge Luis Sampaoli Moya, ou simplesmente El Pelado Sampa.
O careca muy acelerado que comandará a Argentina na Rússia é o terceiro treinador da seleção no ciclo mundialista de 2018. Depois da saída do vice-campeão Alejandro Sabella em 2014, a AFA já havia sinalizado com uma tentativa de agradar seu principal craque. O cargo foi entregue a Gerardo Tata Martino, ex-meia do Newell’s Old Boys (o clube de infância de Messi) e capitão da equipe derrotada pelo São Paulo de Telê Santana na final da Copa Libertadores de 1992. Aquele time era treinado por Marcelo Bielsa – e Martino foi um dos diversos integrantes do elenco que seguiriam os passos do Loco, investindo na carreira de técnico. Além do Tata, Maurício Pochettino e Eduardo Berizzo foram os discípulos mais bem-sucedidos dentro daquele talentoso grupo.
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Martino saiu, mas não sem antes se vingar de um antigo rival. O Tata não suporta Sampaoli, que estava desempregado e já pintava como o mais cotado a substituí-lo na selección. A inimizade surgira ainda nos tempos em que ambos defendiam as categorias de base do Newell’s. Vítima de uma gravíssima fratura na tíbia, Sampaoli abandonou o futebol aos 19 anos. A rivalidade foi renovada quando ambos passaram a duelar como técnicos. Na decisão da Copa América de 2015, Martino teve de amargar o vice justamente contra seu desafeto. Um ano depois, o Tata daria o troco.
Como a saída de Martino era dada como certa, Sampaoli esperava o convite da AFA. Ao mesmo tempo, tinha proposta para assumir o comando do Sevilla. Sabendo disso, Tata foi adiando o anúncio de sua decisão. Com a temporada europeia prestes a começar, o Sevilla cobrava Sampaoli, que acabou sendo forçado a fazer uma escolha. Na semana seguinte à assinatura de contrato do Pelado Sampa com o clube espanhol, Martino oficializava sua saída. Xeque-mate.
A sabotagem do Tata acabou fazendo que o cargo caísse no colo de outro rosarino. Mas se Martino e Sampaoli cresceram entre os leprosos do Newell’s, Edgardo Patón Bauza tinha alma canalla, tendo construído uma fortíssima identificação com o Rosario Central, clube de sua infância e agremiação de que virou ídolo. Atuava como zagueiro central, com mestrado e doutorado em patadas. Bauza fazia bom trabalho no São Paulo, onde apesar do frequente entra e sai de jogadores alcançou a semifinal da Libertadores de 2016. Como o circo da AFA assustava os melhores nomes para a função preferiam continuar empregados por seus clubes –, a oportunidade bateu à porta de Bauza, que topou na hora. Duraria menos de um ano no cargo.
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O escolhido para comandar Messi na Copa da Rússia chegou à seleção com a chancela do próprio craque. Acredita-se que as conversas entre Sampaoli, Messi e Mascherano tenham começado antes mesmo que Patón recebesse o bilhete azul. O lobby do Pulga neutralizou as críticas de diversas personalidades importantes do futebol argentino, a começar por Maradona. “Sampaoli não conhece mais do que Bauza. Se você joga uma bola para Sampaoli, ele te devolve com a mão”, disparou. “O que ele ganhou até hoje? É muita fumaça para pouco fogo”, concordou Carlos Bilardo.
César Luis Menotti disse gostar da proposta de jogo do Pelado, mas afirmou que Sampaoli chegara à seleção “de maneira obscura, o que não é bom”. O próprio Patón alfinetou publicamente o sucessor pelas tratativas de bastidores que o levariam ao cargo: “Eu sabia havia vários meses que ele vinha falando com alguns dirigentes. Não me parece ético, mas a ética sempre perde no futebol”.
Sampaoli não se abateu com as controvérsias. Acostumado a se reinventar, buscou ouvir outros técnicos e se disse aberto às suas ideias dentro do projeto de recuperação da equipe nacional. Filho de policial e ex-caixa do Banco Santa Fe (fanático pelo River Plate, foi demitido ao discutir com um torcedor do Boca na agência), ele apostava nas experiências acumuladas numa vida inteira de obsessão pelo futebol.
Nesse aspecto, é uma cópia do Loco Bielsa, talvez sua maior referência. O Loco, por sinal, é um dos poucos defensores de Sampaoli na Argentina. Num congresso organizado pela CBF, fez um elogio que deve ter mexido com a já bagunçada cabeça do Pelado: “Sampaoli não é meu discípulo. Primeiro, porque esse termo não combina com o que penso. E segundo, porque acho que ele é melhor que eu”.
O trabalho de Sampaoli à frente da seleção ainda não avalizou as palavras de Bielsa. Penou para colocar a Argentina na Copa, empatando com a Venezuela no Monumental e com o Peru na Bombonera e carimbando o passaporte apenas na rodada derradeira, com uma vitória por 3 a 1 sobre o Equador, com triplete de Messi diante de um rival extremamente desanimado.
Se já não era unanimidade na Argentina pelo que mostrou em campo, Sampaoli aumentou seu número de detratores ao humilhar um policial na saída do casamento de sua filha, Sabrina, em Casilda, sua cidade natal. O técnico estava num Ford Focus abarrotado por sete pessoas. Quando o policial parou o veículo e pediu que alguns dos passageiros descessem por motivo de segurança, Sampaoli teve de ser contido para não agredir o agente e ainda soltou uma frase lastimável: “Idiota, você ganha cem pesos por mês, estúpido!”
O filósofo e jornalista Miguel Wiñazki botou o dedo na ferida: “Sampaoli tem uma frase de Che Guevara tatuada no braço e fala assim do salário de alguém. É um falso”. A AFA o manteve no cargo, apesar de, àquela altura, ele já ter torrado a paciência dos cartolas (hiperativo demais, recebeu o apelido de Chispita, “Faisquinha”). Faltasse mais tempo para o Mundial, possivelmente teria sido demitido.
No escucho y sigo, porque mucho de lo que está prohibido me hace vivir. A frase, trecho da canção Prohibido, da banda Callejeros, está tatuada no antebraço esquerdo de Jorge Sampaoli, e ilustra não apenas seu fanatismo pelo rock argentino como também seu temperamento loco. O Pelado, por sinal, é muito amigo de Pato Fontanet, vocalista dos Callejeros, banda envolvida na tragédia que matou quase 200 pessoas num incêndio na casa de shows República Cromañon, em Buenos Aires, em 2004. Fontanet foi preso depois de ter sido julgado um dos responsáveis pela catástrofe – e, atrás das grades na prisão de Ezeiza, recebeu a visita de Sampaoli, que liderava uma campanha por sua soltura. As peripécias do Pelado começaram a chamar atenção desde os primeiros trabalhos como técnico. Enquanto treinava o Alumni, de Casilda, na várzea de Rosário, se pendurou numa árvore atrás do campo ao ser expulso e seguiu comandando sua equipe, aos berros. É fanático por corrida e musculação, atividades que pratica ouvindo gravações de velhas palestras de Bielsa. Assim como seu ídolo, é capaz de falar sobre futebol 24 horas por dia – e isso vem desde a adolescência. “Jorge era insuportável. Andava sozinho repetindo escalações em voz alta”, contou um antigo vizinho em entrevista a um canal argentino.
Só que mesmo sua obsessão pela bola não impediu um dos grandes desastres da história recente da seleção. No último amistoso antes da convocação para a Copa, a Argentina – desfalcada de Messi, machucado – foi colocada na roda pela Espanha em Madri: 6 a 1. A avalanche de críticas na imprensa argentina (onde Sampaoli foi chamado, entre outras coisas, de “cagão”, “papudo” e vendehumo, gíria para o sujeito que “fala muito e pouco faz”) se seguiu a um diagnóstico preocupante de Jorge Valdano: “O clima na seleção é o mais negativo desde 1958”, observou, lembrando de outro 6 a 1, aquele que tirou a Argentina da Copa logo na primeira fase, diante da Tchecoslováquia.
O baile de Madri ocorreu poucas semanas antes do lançamento de um livro com as ideias futebolísticas do Pelado. Além do péssimo timing para a chegada do volume às livrarias, a obra repercutiu pela exaltação imoderada do futebol argentino. Em Mis Latidos (“Minhas batidas”, em tradução livre, título de uma composição de Pato Fontanet), Sampaoli afirma que o futebol praticado em seu país é “historicamente o melhor do mundo”: “As raízes argentinas não se comparam às de nenhuma outra nação”.
O argumento causa um inevitável estranhamento por ser defendido enquanto a seleção completa um quarto de século sem vencer rigorosamente nada. Chamou atenção também a defesa de uma visão instintiva e improvisada do esporte, na contramão do que fazem algumas das melhores equipes da atualidade. “Se planejo, eu me coloco no lugar de quem trabalha num escritório. O futebol não se estuda: se vive e se sente. Eu sou da rua, e negar isso é impossível”, diz o técnico. “É estranho que tenham colocado em mim o rótulo de uma pessoa que planeja. Nunca fui estudioso. Nem na escola, nem na faculdade, nem no curso de treinador. Eu não consigo ler um livro. Viro duas páginas e já fico entediado. Escrevo três coisas em um papel e me canso.”
Sampaoli também já sinaliza desde já que não tem a menor intenção de domar os impulsos de seus comandados, ainda que a cabeça quente tenha prejudicado a Argentina em várias de suas campanhas recentes. “A Alemanha não ganhou porque foi melhor que a Argentina em 2014. Ganhou porque foi mais fria. Se o futebol for assim, saio do esporte. Vou tentar brigar da minha maneira.” Em outro trecho do livro, Sampaoli deixa evidente o tamanho do fardo que Lionel Messi carregará nos ombros quando subir aos gramados da Rússia. “Botaram contra a cabeça dele uma arma chamada Copa do Mundo. Se não vence, atiram e o matam.”
Ao Pelado e ao Pulga, uma boa viagem a Moscou.