Libertadores de Raí em 1992 teve Sustagen na dieta e retiros em Atibaia
Tales Torraga
POR GIANCARLO LEPIANI*
O caminho percorrido por Raí até o pequeno palco onde ele levantou a primeira Libertadores conquistada pelo São Paulo, há exatos 25 anos, na noite de 17 de junho de 1992, foi tortuoso e inusitado. As imagens que ficaram na cabeça do torcedor foram a frieza exibida pelo camisa 10 na hora de cobrar o pênalti que garantiu a vitória sobre o Newell’s no tempo normal (e também no momento de voltar a encarar o goleiro Scoponi na disputa da marca da cal) e sua corrida para abraçar Telê Santana no momento em que Zetti defendeu a batida de Gamboa.
A Libertadores de Raí, no entanto, foi uma maratona com obstáculos – em que o capitão teve de lidar com a exaustão provocada por um calendário esdrúxulo ao mesmo tempo em que era levado a transformar seu papel dentro do elenco, exercendo uma liderança mais contundente e efetiva. Não é exagero dizer que o Raí que comandou tantas outras campanhas vitoriosas – no São Paulo, na seleção e no PSG – foi moldado por aquele atribulado e glorioso primeiro semestre de 1992.
Então com 26 anos, Raí iniciou a temporada num patamar diferente em sua carreira: os títulos paulista e brasileiro em 1991 haviam finalmente dissipado qualquer dúvida sobre seu talento. Depois de encerrar o ano anterior atropelando o Corinthians com seus três gols na decisão estadual, entrou em 92 como titular absoluto da seleção de Carlos Alberto Parreira e esperança do São Paulo para expandir suas fronteiras. Era cotado para reforçar o Real Madrid na janela de transferências europeia.
Mas a agenda de jogos a que foi submetido – que faz o calendário atual parecer uma grande moleza – quase colocou tudo a perder. Para os clubes brasileiros, a participação na Libertadores era encaixada na base do jeitinho em meio às partidas do Campeonato Brasileiro, à época disputado no primeiro semestre. Somando-se a isso as convocações para defender a seleção, Raí se deparava com uma sequência insana de viagens, treinos e jogos. Para alguém que dependia tanto da parte física para render tudo o que podia, era uma situação espinhosa.
Por causa do calendário apertado, o camisa 10 começou a Libertadores no banco: em 6 de março de 1992, o São Paulo foi a campo para enfrentar o Criciúma com Eraldo como titular. Raí entrou quando a parada já estava quase definida. A derrota por 3 a 0 na estreia colocou em dúvida as chances de sucesso da equipe na competição. A virada começou na viagem à Bolívia para pegar San José, em Oruro, e Bolívar, em La Paz. Os dois jogos foram disputados num intervalo de quatro dias e o São Paulo voltou para casa com uma vitória e um empate.
Menos de 72 horas depois de marcar seu primeiro gol na Libertadores, contra o Bolívar, Raí já estava de volta ao gramado do Morumbi para liderar uma goleada sobre o Atlético-PR: 5 a 0. No início de abril, foi a vez de o São Paulo receber o Criciúma e dar o troco pela primeira rodada: 4 a 0, com Raí abrindo o placar. Três dias depois, visita ao Cruzeiro no Mineirão, São Paulo 2 a 0, com Raí marcando o primeiro e servindo Müller no segundo, depois de tomar a bola de um zagueiro no meio e avançar como um trator até a área. A essa altura da temporada, Raí parecia imparável. Foi quando as pernas começaram a pesar.
Além da sequência cruel de jogos e deslocamentos sem tempo para treino e descanso, Raí ainda tinha de lidar com o peso da capitania. No início do ano, comandou uma reunião do elenco para colocar a casa em ordem depois de alguns tropeços. Depois, lidou com o desgaste da dispensa do lateral Nelsinho, decisão da diretoria que desagradou Telê e revoltou os atletas. Em maio, com o São Paulo já envolvido nos mata-matas da Libertadores, Raí teve seus nervos e seu fôlego colocados à prova.
A certa altura do mês, por exemplo, jogou a ida das quartas contra o Criciúma, foi à Europa para um amistoso entre Brasil e Inglaterra em Wembley e retornou às pressas para o duelo de volta, em Santa Catarina. Passou boa parte de seu 27º aniversário numa poltrona de avião, voando sobre o Atlântico, na ida a Londres. “Não sou de ferro. Estou cansado”, confessou no retorno. Quase sem dormir, não jogou bem contra o Criciúma.
No finzinho do jogo, foi expulso numa troca de empurrões com o ponta Jairo Lenzi. O desgaste tinha feito Raí deixar de ser Raí. O capitão precisava de um alívio. Ao invés disso, ganhou um presente de grego: viagem à sufocante Belém para encarar o Paysandu quatro dias depois do frio catarinense.
Suspenso no jogo de ida da semi, contra o Barcelona do Equador, em casa, Raí voltou ao time no jogo de volta, em Guayaquil. Foi muito mal – a ponto de ter sido substituído por Macedo no decorrer da partida. “Parecia arrastar 500 quilos em cada perna. Cheguei em casa, vi o teipe do jogo e não acreditei. Parecia que estava doente”, contaria depois. Pior: Raí carregava também o peso de saber que era a principal referência do time, de constatar que os companheiros caíam de produção quando o viam fora de sintonia.
Para um capitão reconhecidamente tímido e introspectivo, era um abacaxi a mais para descascar: como transmitir segurança aos demais num momento em que tentava superar suas próprias adversidades? “Até agora não exerci a liderança como queria. Estava esgotado e cheguei a atrapalhar a equipe”, dizia, às vésperas de encarar o Newell’s.
Alarmada com a situação de seu maior craque, a comissão técnica traçou um plano para fazê-lo relaxar e recarregar as baterias. Foram dias inteiros de repouso absoluto e superalimentação. O médico Marco Antônio Bezerra incluiu vitamina B-12, medicamentos contra fadiga muscular e até Sustagen na dieta do camisa 10. Às vésperas dos jogos mais importantes de sua vida até aquele momento, ao atleta exemplar que ganhou notoriedade pela saúde de ferro e pelo arranque de cavalo era ministrada a suplementação alimentar normalmente receitada a criancinhas malnutridas.
Depois da viagem a Rosário, onde Raí fez boa partida na primeira final contra o Newell’s, outra rodada de restauração física e mental: enquanto um time misto encarava o Flamengo no Maracanã, Raí passava o fim de semana com a família num hotel em Atibaia. O resto do elenco se juntou ao capitão na estância hidromineral nos dias que antecederam a finalíssima. Na concentração, no Park Hotel, Raí contou ter sonhado várias vezes com um Morumbi completamente lotado.
Talvez por isso, já estava preparado para duelar com Scoponi na batida do pênalti mais importante da história do clube. “Quando caminhei para a bola, senti o nível de tensão no estádio. Estranhei minha reação de calma. A cada passo que dava para a bola, meu coração quase parava. Mas me segurei.” Raí cobrou firme, sem hesitar, deslocando o goleiro argentino. Cerca de 40 minutos depois, já na madrugada do dia 18, estava com a taça em suas mãos.
* GIANCARLO LEPIANI, jornalista, é um dos criadores do ''Projeto Tóquio'', que revive o dia-a-dia do São Paulo em 1992 no Facebook, Instagram e Twitter.
** NOTA DO PATADAS y GAMBETAS: Que fique aqui o mais cálido abrazo portenho a todos os são-paulinos nesta data querida. Raí, Telê Santana e, como se não bastasse, Paula Toller! Era tanta gente boa junta que parece mesmo que vocês tiveram um sonho, muchachos.
Que a alegria desse dia mágico acompanhe vocês siempre y siempre! Saludos!