Patadas y Gambetas

Argentina x Inglaterra de 86 vira livro; leia trechos

Tales Torraga

El partido, 'O jogo', livro que detalha o Argentina x Inglaterra de 1986, é o lançamento desta terça-feira (1º) em Buenos Aires.

Escrito pelo jornalista Andrés Burgo, autor de outras preciosidades, a obra da editora Tusquets tem 296 páginas em espanhol e pode ser comprada aqui.

Capa do livro lançado hoje

O mercado editorial argentino talvez seja o mais farto do mundo do futebol. Retomaremos o assunto adiante. A hora agora é de voltar 30 anos e conhecer os momentos prévios do jogo mais marcante da história do esporte argentino.

Leia a tradução de trechos de um capítulo de El partido:

                                                        ***

Às 10h20 do domingo 22 de junho de 1986, os jogadores argentinos entram no vestiário do Azteca e refazem seus rituais: Cuciuffo coloca sobre um armário a Virgem de Luján e Maradona liga seu aparelho de som, um Sony vermelho, pequeno e moderno para a época. Começa a tocar o segundo cassete que a seleção tem reservado para os dias de jogos: o das ''canções de vestiário''.

Ingresso do jogão histórico

A esse ponto dos acontecimentos, sem embargo, não se deve sugerir uma coleção de rostos amáveis. O que se sucede não é relaxado: a atmosfera do vestiário é tensa, como se uma nuvem de preocupação se filtrara pelas arestas. A música se converte em uma alegria simulada.

– Uma das grandes lembranças que tenho deste dia é o silêncio no vestiário – diz Tapia.

– Havíamos feito tudo igual que nas partidas anteriores, mas ao chegar ao Azteca foi diferente. Quase não houve música, eu não a lembro. Sim o silêncio. Nos olhávamos todos. Era uma concentração muito especial.

– Eu estava cagado, na verdade eu estava cagado – disse Giusti.

– E olhe que eu era um velho no futebol. Tinha quase 29 anos, havia jogado dez anos na Primeira Divisão, Copas Libertadores que eram de terror, te cuspiam, uma final de Mundial de Clubes, porém estava cagado.

– Na viagem de ônibus cantávamos todos, mas já no vestiário não havia gargalhadas – disse Brown.

– O único que queríamos era que começasse o jogo.

Alguns minutos depois das dez e meia, os jogadores saem por um momento ao gramado: querem examinar o terreno, resolver que tipo de travas escolheriam para suas chuteiras, confirmar a percepção que haviam tido na manhã anterior, durante o primeiro contato com a grama do Azteca, quando haviam visitado o estádio para reconhecer o campo de jogo.

– Os jogadores saíam e tinham que ver as pombas que picoteavam o gramado – disse Benros, o roupeiro.


– Quando viam as pombinhas, diziam: ''Pronto, ganhamos''.

A essa hora, ainda cedo, os primeiros torcedores já estão nas tribunas, as bandeiras começam a se esticar e Pumpido se senta atrás das traves onde Maradona faria seus dois gols. Depois, os argentinos voltam ao vestiário, onde os auxiliares intensificam seu trabalho de massagear pernas, vendar tornozelos e lustrar chuteiras.

– Eu lustrava as chuteiras do Maradona e tinha meu próprio segredo, conta Benros.

– Diego me perguntava: ''o que você coloca na chuteira, filho da p…'', mas eu nunca lhe dizia. O que usava era um creme de silicone com querosene branco, uma pomada usada na montaria dos cavalos. As chuteiras ficavam espetaculares.

Diego levou ao Mundial cinco pares Puma número 37, alguns com travas altas e outras baixas. Na noite anterior aos jogos, vinha ao meu quarto e as provava, mas no fim escolhia sempre as mesmas, umas que ficavam perfeitas. Pelas dúvidas, levava sempre dois pares mais para o campo, umas com travas baixas e outras altas. Cada tanto Diego me ajudava a lustrá-las, mas o que eu sempre fazia sozinho era vendar seus pés.

Enquanto alguns jogadores escolhem chuteiras ou vendam os tornozelos, outros começam a condicionar suas pernas. Três muchachos massageam os músculos dos jogadores que seguiam rumo à proeza ou o fracasso. O encarregado principal, Roberto Molina; o ajudante, Galíndez, às vezes roupeiro e às vezes massagista, e o exclusivo de Maradona, Salvatore Carmando, um italiano que Diego havia conhecido no Napoli. O homem ganhou sua confiança de tal maneira que Maradona o contratou para que o acompanhasse no México.


– Massageava Diego durante uma hora antes de cada jogo – diz Salvatore Carmando por telefone desde sua casa em Salerno, a 70 quilômetros de Nápoles.

– Suas pernas eram diferentes das dos outros jogadores. Maradona tinha músculos duros e flexíveis, nunca vi nada igual. Ele se jogava numa maca do Azteca e se relaxava, como se entrasse em transe, e eu não dizia nada enquanto o massageava. Eu usava um creme especial, que fazia com o barro. Era uma receita própria que nunca contei a ninguém.

– Dos 16 jogadores que eram titulares e suplentes, só oito ou dez queriam massagem – diz Roberto Molina no bar do Vélez, clube onde trabalhou por 25 anos.


– Uma massagem normal, nas duas pernas, levava 20 minutos, mas muitos pediam também nas cervicais. Cada massagista tem sua fórmula: eu usava sabão.

O começo do jogo se aproxima a toda velocidade, como um trem bala, mas o protocolo de superstições continua. Na verdade, não terminará até um minuto antes.

– Quando terminavam as massagens tinha que tocar um telefone público que havia no vestiário – diz Brown.

– A primeira vez que tocou foi antes da estreia, contra a Coreia, eu atendi, e ficou como um ritual. A partir do segundo jogo foi óbvio que o cara que chamava era alguém da seleção, mas nunca soube quem. Às vezes já estávamos prontos para entrar em campo e o telefone não tocava. Nos olhávamos e nada…Então Bilardo dizia ''Bem, dale, vamos fazer isso'', até que enfim tocava e eu corria para atender. Dizia ''alô'' e do outro lado ninguém nunca respondia, então eu dizia ''ah, bem, vai para p… que pariu, e desligava''.

O chefe de imprensa da AFA, Washington Rivera, entra no vestiário, cumprimenta e se despede do plantel com um insulto. Enrique pede a Benros que alcance os chinelos que tem a centímetros de distância. Bilardo dá a Moschella, o administrativo da AFA, a planilha com a formação oficial e os documentos de identidade dos jogadores para que os entregue à Fifa.

Maradona desenha a figura de um corpo no solo, distribuindo suas chuteiras, sua camiseta, seus calções e suas meias, e não deixa que ninguém passe por cima.


É hora de aquecer. Lidera o preparador físico, Echevarría, e dura 20 minutos no túnel de entrada do gramado. Não acontece, mas ao fundo deveria tocar os teclados épicos de Carruagens de Fogo.

Os jogadores voltam ao vestiário e vestem estranhas camisetas azuis. É a primeira vez que as veem já confeccionadas.

– Estávamos no vestiário do Azteca e seguramos a camiseta que tínhamos que colocar…que camiseta feia, mamita querida – ri Giusti.


– Você viu? Que filhos da p….Vimos Burruchaga e dissemos: ''E isso, o que é, essa porcaria?''.

Em um papel colado na parede pregam as últimas ordens: a formação do time e o nome do rival que cada jogador deverá marcar nos escanteios e nas cobranças de falta. O vestiário parece o camarim de um teatro segundos antes de os atores saírem ao palco.

Há jarras de chá e garrafas de café para uma goladinha rápida. Toalhas para secar a transpiração. Vendas espalhadas pelo piso. Tela adesiva. São 11h50. Faltam 10 minutos para começar o jogo.


– Eu colocava a chuteira – se emociona Brown – e Diego vinha, me dava uma palmada e me gritava: ''Dale, eh, dale que se você jogar bem eu jogo bem. Dale, você é o melhor, dale que vamos matar esses filhos da p…''.

– Entrava em campo que o coração não te cabia no peito.

“Pensem na Argentina! Transpirem e urinem sangue!”, motiva Bilardo, como se tudo o que se sucedesse a partir de então fosse um salto no vazio.

Os jogadores se convocam para a última reunião, improvisada, porque já devem ir até o túnel. Os oficiais da Fifa, como cuidadores, reclamam pontualidade, porém Maradona primeiro fala ao seu rebanho.

– O primeiro que lembro deste dia – disse Batista – é a chamada que Diego fez, como capitão, no vestiário, dando força. Foi uma força diferente das dos outros jogos. Sabíamos o que o jogo significava para todos os argentinos. Se falou disso, de que era um rival que…havia que ganhar sim ou sim, que não nos permitíamos perder.

– Isso foi emocionante – fala Giusti. – Diego tomou a palavra no vestiário. Não sei se fez alusão a algo da guerra, não me lembro bem, mas lembro da chamada, nos juntamos todos, algo que não fizemos nos outros jogos, e sim contra a Inglaterra.

– A sensação era de querer ganhar como fosse, de querer arrombá-los. Essa é a verdade.

Quando a seleção sai do vestiário já é uma tropa selvagem. Ainda nas estranhas do estádio, no túnel, os jogadores esperam a chegada dos ingleses, e poucos minutos depois têm seu primeiro contato. Ficam a centímetros. Se fossem animais, mostrariam os dentes caninos. Às duas seleções se soma o trio de árbitros. De acordo com o protocolo da Fifa, e pela primeira vez nos Mundiais, as equipes e os juízes devem entrar de forma conjunta no campo de jogo: um jogador atrás do outro formando duas filas paralelas, como se fosse um cumprimento à bandeira em um ato estudantil. Uma cena com cara de confraternização,  mas que os argentinos aproveitam para cruzar olhares e gritos com seus rivais.

“Se você estivesse no gramado quando entramos – disse Brown ao jornal 'Crónica' de 24 de junho, dois dias depois do jogo -, daria conta de que tudo era diferente. No túnel, gritávamos: 'Temos que ganhar desses filhos da p…, temos que ganhar desses filhos da p…', e os ingleses não entendiam nada.”

–Entramos no gramado com os dois times juntos – recorda Brown no verão de 2015 -, em filas paralelas, e olhando para os jogadores deles como dizendo: “Filhos de uma enorme p…, a quantidade de argentinos que mataram, vão tomar no c.”.

– Era como se a gente assumisse esse orgulho por todo o povo que estava em sua casa, que havia perdido um filho, que havia perdido um irmão. Então íamos ''dale, dale que matamos esses filhos da p…

– M…., outra vez a guerra. Não imagina o que foi esta saída ao campo.

“Vimos os argentinos no túnel e estavam confiantes, ansiosos por entrar no gramado'', disse Terry Butcher, defensor inglês, no livro 'Argentina-Inglaterra, Mundiais de futebol e outras pequenas guerras'.

– As outras equipes que enfrentamos, Polônia ou Paraguai, não tinham tanta vontade de entrar. Os argentinos pareciam mais apreensivos.

Bilardo também se coloca ao lado dos ingleses não para intimidar, mas para comprovar quanto medem. Esses detalhes são aproveitados para calibrar jogadas. No casamento de Maradona, em 1989, ensaiaria uma dupla encenação: pedir à mulher de Ruggeri, Nancy, para dançar com seu marido perto de Careca, atacante brasileiro, e mandar Brown à pista de dança à frente de Ciro Ferrara, defensor italiano. Bilardo os olhou desde longe e observou a diferença de altura dos quatro.

Festa em Córdoba

–Tínhamos uma ordem para entrar em campo – diz Burruchaga.

– O primeiro era Diego. O último, eu, com Carlos (Bilardo) atrás que me enchia o saco. Me repetia o que precisava fazer no jogo. Os meio-campistas tinham que saber tudo e, como era o último da fila, ficava louco.

Um delicioso compacto daquele jogo, com narração de – incrível – Osmar Santos pela TV Globo está aqui. De arrepiar.