Vice-presidente da Inter e ‘simples de coração’, Zanetti troca Copa por paz
Tales Torraga
''Querido como jogador e pessoa. Isso é o primeiro que se diz de Zanetti. Depois, é possível agregar muitos adjetivos. Poderia se escrever dez livros mais. Não um só.''
Nas bancas desde 1919, a revista argentina El Gráfico é das mais antigas e respeitadas. E com esses elogios abriu um recente perfil sobre Javier Zanetti, 42, ex-lateral e recordista de jogos na seleção.
Javier ''Pupi'' Zanetti tanto fez que virou referência de conduta de vida – não só desempenho esportivo. Ninguém teria carreira como a sua se os passos fora do gramado não seguissem as elegantes passadas das quatro linhas.
Pela Argentina, disputou 145 jogos durante 17 anos, 1994 a 2011. Foi comandado por Passarella, Bielsa, Pekerman, Basile, Maradona e Batista.
Defendeu só três clubes. Talleres de Remedios, Banfield e Inter de Milão. No gigante italiano, de 1995 a 2014. Parou aos 40 anos e com mais de 1.100 partidas.
Jogou, entre Argentina e Inter, com Eto’o, Messi, Pirlo, Verón, Blanc, Ronaldo, Batistuta, Djorkaeff e Roberto Baggio.
O número 4 da Inter será seu para sempre – a camisa deixou de fazer parte do uniforme. O museu do clube tem estátua com seu rosto. E assim que saiu de campo, maio de 2014, virou vice-presidente.
Muito pelas suas atitudes como capitão. Por mais de década, repassou parte do dinheiro dos jogadores da Inter à caridade, roupeiros e massagistas.
A atual função é muito social e nada burocrática. Zanetti sempre pacifica as relações entre dirigentes e jogadores. ''Não me meto na vida de ninguém, mas do clube para dentro precisam saber o que é a Internazionale.''
A calma é mantida com a família. Mora a apenas cinco quilômetros da fronteira com a Suíça. É vizinho de George Clooney. ''O vejo e lembro dos vizinhos de Dock Sud (Grande Buenos Aires). E dou risada sozinho.''
Casado com Paula, companheira desde os 19, Zanetti transmite o bajo perfil aos três filhos – sempre com sacolas para guardar e doar brinquedos usados.
''Sem sacrifício não há nada. É a realidade. Se não for assim, amanhã, quando encarar a vida, vão enfrentar uma desilusão enorme. Nada é fácil. É essa a educação que a gente precisa passar.''
Zanetti mantém a paz mesmo ao falar da ausência das Copas de 2006 e 2010. Jogou as Eliminatórias de ambos Mundiais, mas, pela idade avançada (33 e 37 anos), foi duas vezes preterido.
''Javier é um cavalheiro, mas suas pernas não dão mais'', disse o técnico Maradona.
Tanto há seis anos como agora, o discurso de Zanetti é conciliador. ''Não há o que responder, só respeitar. O que poderia fazer, fiz. A Inter foi campeã da Europa e do Mundial em 2010. Joguei 57 partidas na temporada. Ya está.''
''Não quis conversar com Pekerman ou Maradona e nem vi razão para isso. Aceito tudo. Os motivos dos outros são os motivos dos outros, nada que eu controle.''
Surreal, 2010 acabou com Zanetti abraçado por um emocionado e aos prontos José Mourinho. Para o caxias técnico português, Javier serviu. A Maradona, não.
Zanetti não se importa. Prefere agradecer, como a épica Mercedes Sosa.
Tanto em 2007 quanto 2011 – imediatamente depois das Copas perdidas -, integrou a primeira convocação dos novos ciclos. Negar ir? Jamais. ''Havia o convite. E não razão para recusar. A seleção não é minha, nem do Pekerman, nem do Maradona.''
''Pela reação das pessoas e por tudo que aconteceu, preferi seguir assim que ter jogado essas Copas. Me senti mais orgulhoso da minha personalidade.''
Em 2001, quando a pobreza ajoelhou a Argentina, Zanetti e a mulher criaram a fundação Pupi (seu apelido e as iniciais de 'por un piberío integrado', por uma infância integrada).
A voz quebra: ''Um garoto começou com a gente, estudou, passou a trabalhar e foi um dos primeiros voluntários para nos ajudar. Forte. Muito forte''.
Fortes são também outros exemplos seus. Machucado, voltou em 2013 ao Talleres da infância para se tratar. ''Ele veio aqui, capitão da seleção e da Inter de Milão, e pediu sempre licença e por favor para entrar no vestiário'', contaram dirigentes.
Não é preciso contar mais. Zanetti é o próprio refrão de Simples de Coração, do Engenheiros do Hawaii, talvez a mais argentina banda do rock brasileiro.
Zanetti cansou de brincar de perfeição. Simples. De coração.